quinta-feira, 30 de junho de 2011

Classe, gênero e teatro


Pra quem tiver estômago!

Da Revista Caros Amigos

Por Fernando Kinas

A análise da realidade e dos indicadores sociais brasileiros mostra um quadro alarmante sobre a situação das mulheres: salários inferiores aos dos homens para funções equivalentes; violências de todo tipo, das agressões domésticas aos estupros e crimes considerados passionais; visão sexista dos meios de comunicação, em especial através da publicidade; realização de abortos sem amparo médico ou psicológico por parte do Estado; exploração sexual, inclusive na infância e adolescência; assédio e humilhações no ambiente de trabalho e nas ruas; número insuficiente de creches e de vagas no ensino fundamental (que confinam ainda mais as mulheres ao âmbito privado e doméstico); tráfico de meninas e mulheres; participação desigual nos espaços políticos de representação; desrespeito à livre orientação sexual; ordenamento jurídico discriminatório; jornadas duplas ou triplas de trabalho.

No âmbito internacional seria preciso mencionar a barbárie que representa o feminicídio em lugares como Ciudad Juárez, os estupros utilizados como arma de guerra, as mutilações genitais e os casamentos forçados comuns em muitos países.

Diante desta situação uma evidência se impõe: o teatro deveria incluir a reflexão sobre gênero no conjunto das suas preocupações, dedicando atenção especial às diferentes modalidades de opressão exercidas sobre as mulheres e às formas de organização e resistência dessa parcela majoritária da população. 

Na linha direta de um sem-número de reflexões sobre as articulações entre capitalismo e patriarcado – embora ainda insuficientes diante da importância do fenômeno –, outra ação teatral seria a de revelar o mecanismo de mútua alimentação – exploração de classe , opressão de gênero – que mantém, amplifica e naturaliza este ciclo de violências. Iniciativas como o Estatuto do Nascituro, a flexibilização da Lei Maria da Penha, os ataques ao PNDH-3 e as descaracterizações da Comissão da Verdade, confirmam a existência de uma aliança entre os setores mais conservadores da sociedade (patriarcais, capitalistas e religiosos). 

A divisão sexual do trabalho e o controle dos corpos e da sexualidade das mulheres continuam sendo pilares da nossa sociedade. Em função da peculiaríssima formação social do Brasil (basta ler Caio Prado Jr.), tais violências – que também envolvem questões como heteronormatividade, preconceito racial, ideal de feminilidade, maternidade compulsória – tomaram proporções epidêmicas e intoleráveis.

É neste contexto que surgiu o projeto teatral Carne – Patriarcado e capitalismo, que além de uma peça (já apresentada em centros comunitários, sindicatos, universidades, unidades prisionais, ong's, escolas, repartições públicas), inclui oficinas, intervenções urbanas, debates, eventos multiartísticos e exibição de filmes. O projeto procura estimular a discussão crítica em torno das questões específicas e gerais relacionadas à opressão de gênero e à exploração de classe. Este conjunto de ações conjuga três aspectos que nos parecem indissociáveis: investigação sobre a formação social brasileira e a realidade contemporânea; pesquisa de novas formas (teatrais e extra-artísticas) e articulação estreita, através de parcerias efetivas, com movimentos sociais e organizações populares.

Muitas ações teatrais, mesmo quando se colocam no campo crítico, parecem ziguezaguear entre a recusa decidida do modelo mercantil e espetacular – que significa um afastamento dos códigos mais estabelecidos – e a incapacidade de identificar, ou inventar, as maneiras de construir esteticamente a radicalidade necessária. Esta é uma das tarefas que o novo teatro de grupo, surgido nos últimos quinze anos, ainda precisa enfrentar. Quando propusemos Teatro/mercadoria – Espetáculo e miséria simbólica (2006-2008), já estava em foco, dentro e fora da cena, esta dialética entre realidades sociais e experiências formais. 

A questão central debatida neste projeto era a generalização da forma-mercadoria e sua invasão no cotidiano das nossas vidas. Os recursos pesquisados buscavam evitar as derivas estetizantes e, ao mesmo tempo, indicavam que a falta de interrogação estética seria capaz de engendrar um teatro pouco combativo e pouco útil, porque vítima de uma perigosa letargia criativa. Embora um certo estiolamento de modos mais contundentes de fabricação teatral, que atinge inclusive as artes cênicas críticas (épicas, dialéticas e materialistas), não seja pior do que os diferentes modismos pós-modernos, não se deve subestimar o potencial paralizante e autofágico da recusa determinada, embora bem-intencionada, das "novas formas".

Articular capitalismo e patriarcado – e assim revelar conexões convenientemente silenciadas (publicidade e pornografia, religião e violência, sexismo e mercado de trabalho etc.) – exige, além de clareza e compromisso político, disponibilidade crítica para a pesquisa, a invenção e a intervenção. Durante a ditadura civil-militar brasileira, Augusto Boal afirmava que a realidade era sempre nova, portanto, seria preciso buscar "formas novas". Mas acrescentava: "Não devemos correr como bobos em busca da úlltima moda. Devemos responder com formas novas aos novos desafios da realidade." Ao recusar a convulsão artaudiana e o naturalismo televisivo, evitando o embate de subjetividades e a fábula que se presta à adesão emocional, o trabalho cênico Carne contribui para a crítica aos velhos e insuficientes esquemas teatrais, tentando responder aos "novos desafios da realidade". 

E esta crítica aos modelos caducos não diz respeito apenas à cena, mas ao conjunto do fenômeno teatral: pesquisa e ocupação de novos espaços, horizontalidade na tomada de decisões, relação crítica com a imprensa patronal, preços populares ou gratuidade das atividades, estabelecimento de vínculos com o público antes e depois das apresentações, caráter processual do trabalho etc. 

Quanto à cena propriamente dita, estatísticas, trechos de romance, depoimentos, análises sociológicas, canções populares, imagens publicitárias, expressões e ditos populares, filmes documentários, obras de arte contemporânea e matérias jornalísticas compõem o roteiro cênico. São opções que, aliadas a outras estratégias estéticas e políticas, apostam no alargamento dos limites que a arte institucional tende a fixar. Nossa aposta (baseada em fatos reais!) mostra que existe um feminismo anticapitalista em diálogo com formas artísticas contemporâneas.

Embora haja um chão histórico em que podemos pisar com alguma segurança (o teatro dialético brechtiano, o agitprop histórico, os CPC's da UNE, o teatro documentário, parte das vanguardas artísticas do século vinte), não se pode negar a realidade material do teatro brasileiro. Apesar de conquistas inegáveis como a Lei de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo (aprovada em 2001), a condição em que ainda estamos metidos é de semi-profissionalismo. 

Mais do que uma confiança ingênua no papel do Estado ou nas virtudes, exemplarmente falaciosas, do debate social-democrata em torno de políticas públicas de cultura – ou de uma corrida oportunista e adicta aos cofres públicos –, trata-se de preservar espaços e interesses públicos. Executivo e legislativo, nos diferentes níveis da administração, não fizeram o dever de casa. E nada indica que o farão sem pressão popular. 

O acinte fisiológico das emendas parlamentares, as leis baseadas em renúncia fiscal e a política de editais-esmolas sobrevivem indiferentes aos governos conservadores e neoconservadores que se sucedem. Não basta compreender os limites das políticas de Estado (e do próprio Estado). Sem destruir o balcão de negócios em que se transformou a gestão dos recursos públicos no país (a Copa do Mundo e as Olímpiadas não nos deixam mentir), pouca coisa pode mudar. 

Carne, como outros trabalhos cênicos que reivindicam a vocação política do teatro, procura expor as fraturas e a engrenagem das submissões fabricadas por sociedades autoritárias e injustas, e também o acerto em negar os limites confortáveis que o teatro habitualmente produzido estabelece. Fernando Kinas. Diretor e pesquisador teatral, doutor em teatro pela Sorbonne Nouvelle. Dirige desde 1996 a Kiwi Companhia de Teatro.

Fernando Kinas é diretor do projeto teatral "Carne – Patriarcado e capitalismo", em cartaz durante os meses de julho e agosto no Teatro Coletivo (Rua da Consolação, 1623, São Paulo).

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